segunda-feira, 5 de maio de 2014

A Pipa, o Bispo e o Azul
Aluno: Ericles da Silva Santos
Ouvi barulho e vozes crescentes, um zum-zum-zum empesteava o assentamento onde
moro. Quanto mais pedalava, mais me embrenhava num corre-corre alucinado: meninos,
mulheres, todos corriam para a frente do barracão. Que enxame é esse? Que cabrunco está
acontecendo?
Era o Pipa! De novo o Pipa? Dessa vez ele tinha ido longe demais. Estava no alto do pau
de sebo, quase pendurado no topo. Aquele mastro tinha sido colocado ali dois dias antes.
A festa ia acontecer no final de semana: algodão-doce, corrida de ovo e pau de sebo.
“Desce daí, seu doido!” Uns jogavam areia, pedras...
O Pipa era mestre na arte de fazer papagaio. Quando não estava na roça ajudando os
pais, estava viajando nas asas das pipas. Ele se isolava. Dizia que gostava da solidão.
Solidão a três: ele, a pipa e a imaginação... Logo eram seis e depois eram muitos...
Era diferente. Era mesmo feio. Chamava-o de louco. Particularmente, ele tinha algo que
me fascinava. Vez em quando soltava um sorriso azul.
O artista de caçar passarinho e criar pipas estudava comigo, e na mesma sala. Outro dia,
na escola, o professor falou do filho mais ilustre da nossa cidade: Arthur Bispo do Rosário.
Um misto de desapego e curiosidade tomou conta da turma. Pipa foi um dos que deram uma
chance ao professor. Ouviu tudo atentamente. O professor falou da importância de a gente
incorporar o Bispo como elemento nosso. Ele lhe disse que somos conterrâneos do homem
e desconhecíamos sua obra, o seu valor, a sua história. “As pessoas passam pela estátua do
Bispo, na entrada da cidade, e falam mal, e como falam mal: louco, preto, feio e pobre”.
Então ele nos pediu que acrescentássemos a palavra “gênio”.
— Gênio?
Aí o Pipa gritou: “Louco, preto, feio, pobre e gênio!” E riu! Riu tanto que tumultuou a
aula. Subiu na carteira e foi só presepada, muganga. Imitava o Bispo do Rosário, com altas
doses de esquizofrenia.
“Quer levar um sopapo, menino? Está ficando mais besta ainda. Deve ser a escola!
Já disse que Jamerson nunca foi bom da cabeça. E está piorando!”, gritava o pai, meio
desesperado.
“Não ligo, não! Sei que não sou gênio, mas sinto dentro de mim que sou diferente, que
vejo muito diferente dos meus irmãos. Eles não me perdoam por isso. Só minha mãe. Ela é
a minha Nossa Senhora, sempre generosa.”
“Desce daí, meu filho! Você vai acabar matando sua mãe! Gente, ajude aí! Meu Pipa é
sonâmbulo. Ele está é dormindo.”
Quando me viu no meio da multidão, fez cara de súplica. Não me fiz de rogado! Joguei
a bicicleta e desbravei aquele pau de sebo. Não tive dificuldade. Aquele mastro já me co-
nhecia. Agarrei o meu amigo pela cintura, a multidão uivou, berrou, decepcionada.
Parecia um anjo de olhos cerrados. Tremia os lábios, soltava gaitados. Na mão esquerda
uma pipa azul. Resmungou. Abraçou-me. “Quem é que está aí? Qual é a cor da minha aura?”

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